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Paralelos entre o Enuma Elish e o Gênesis.

Na internet, é comum vermos comparações entre as passagens descritas na Bíblia e os mitos e lendas descritos em diversas tabuletas mesopotâmicas, sendo as duas mais comparadas, o Gênesis bíblico e o Enuma Elish babilônico. Neste breve estudo, analisaremos paralelos entre os dois.

Este artigo não visa mudar opiniões religiosas, apenas evidênciar semelhanças e diferenças entre o mito da criação babilônica e alguns contos utilizados pelos Hebreus nos livros bíblicos, os quais descrevem a criação do mundo, do homem e outros. Para isso, começaremos resumindo um pouco do que são o Enuma Elish e o Gênesis.

O ENUMA ELISH.

O Enūma Eliš ou (Enuma Elish), 𒂊𒉡𒈠𒂊𒇺 em cuneiforme babilônico (neo-acadiano), significa (quando no alto), também conhecido como "As sete tábuas da criação". Trata-se do mito da criação babilônico, descoberto por Austen Henry Layard em 1849, em tabuletas de argila fragmentadas, nas ruínas da Biblioteca de Assurbanipal em Nínive (Iraque), e publicado por George Smith em 1876.

Existem diversas versões do Enuma Elish, incluindo versões Hititas e Assírias, a versão da Biblioteca de Assurbanipal é a mais nova, datando de aproximadamente 1100 a.e.c., porém, existem versões acadianas e babilônicas que datam de aproximadamente 2.000-1800 a.e.c. Para este artigo, utilizaremos a versão babilônica, que embora não seja a mais completa, está mais próxima da origem do mito do que as demais.

Tablets Lv.b234, Lv.b235, Lv.b236, Lv.b237, Lv.b238, Lv.b239, Lv.b240. Museu do Louvre

O Enuma Elish tem cerca de 1000 linhas escritas em cuneiforme neo-acadiano, sobre sete tábuas de argila, cada uma com um numero entre 115-170 linhas de texto. As tabuletas estão bastante destruídas, mas de acordo com uma cópia idêntica encontrada em, Sultantepe, antiga Huzirina, podemos vislumbrar os trechos que estão faltando nessa versão. Tal cópia foi perdida em um incêndio no Museu Nacional do Iraque, em 1952, mas ainda existem transcrições da mesma.

Este épico é uma das fontes mais importantes para a compreensão da cosmovisão babilônica, centrada na supremacia de Marduk (ou Marduque), e na criação da humanidade para o serviço dos deuses. Seu principal propósito original, no entanto, não é uma exposição de teologia ou teogonia, mas a elevação de Marduk, o deus chefe da Babilônia, acima de outros deuses da Mesopotâmia, tendo em vista que eles usaram as crenças acadianas, e as adaptaram a sua cultura.

O Gênesis

Do grego, (Γένεσις,) "origem", "nascimento", "criação", "princípio", é o primeiro livro tanto da Bíblia Hebraica como da Bíblia cristã, antecede o Livro do Êxodo, fazendo parte dos 5 livros do Pentateuco. Gênesis é o nome dado pela Septuaginta ao primeiro destes livros, ao passo que seu título hebraico é Bereshit (No princípio).

O Livro traz a visão da criação do mundo na perspectiva hebraica, até à fixação deste povo no Egito, através da história de José. Durante muito tempo a Bíblia e em particular o Gênesis, foi a mais antiga fonte de relatos escritos sobre o começo do mundo, da vida, e sobre os acontecimentos dos povos do Antigo Oriente Médio.

A maioria dos estudiosos bíblicos modernos acredita que a Torá chegou à sua forma presente no período pós-exílio (depois de 520 a.e.c.). Tenha em mente que tradições mais antigas, tanto orais quanto escritas, detalhes geográficos, demográficos e as realidades políticas da época, foram levadas em consideração.

Gênesis Cap I

Os cinco livros são geralmente descritos na hipótese documental como se baseando em quatro fontes, entendidas como escolas literárias e não indivíduos: a fonte javista e a fonte eloísta (entendidas como uma única fonte), a fonte sacerdotal e a fonte deuteronomista. Ainda há discussões sobre a existência e origem das fontes não-sacerdotais, mas a tese majoritária é que estas existiram e são posteriores ao exílio.

O Mito

Para entendermos o contexto desta pesquisa, precisamos primeiro entender o que é um mito e quais os tipos de mito, e é o que faremos agora. Os mitos se mostram atemporais, são criados de acordo com a realidade de cada povo e cultura, para assegurar sua identidade e crenças, isto é, os mitos são moldados para satisfazer os anseios de uma sociedade.

Everaldo Rocha em “O que é Mito? ” (2001, p. 7) nos dá uma visão esclarecedora a respeito deste assunto. Afirma que que:

“Mito é uma narrativa, uma forma das sociedades espelharem suas contradições e exprimirem seus paradoxos, dúvidas e inquietações”.

Já para Gerd Theissen, os mitos são histórias provenientes de um tempo determinante para o mundo, resquícios de uma era antiga e obscura da qual não se tem total entendimento. Para ele, os mitos não podem ser modernos, pois nos dias atuais seria propriamente impossível a criação de mitos, tendo e vista a evolução tecnológica e mental do ser humano atual.

Já Severino Croatto diz:

“mito é a definição de um acontecimento originário de atos dos deuses, cuja finalidade é “dar sentido a uma realidade significativa”.

Bom, para min o mito não é uma simples narrativa qualquer, se fosse, perderia sua especificidade e seria comum que todas famílias tivessem mitos próprios em suas histórias. Ao meu ver o mito seria uma narrativa especial, capaz de ser distinguida das demais narrativas humanas comuns. Não que este mito seja real e tenha acontecido, mas o contexto em que ele foi criado pode nos identificar mais do que o próprio mito em si.

O que nos importa entender é que, independentemente do significado da palavra mito, é notável que os corpos celestes assumem sempre posição de destaque na inspiração mito poética antiga. Para algumas culturas o sol tem o papel central, representa o deus criador e a vida, quando que em outras a lua tem maior influência devido ao fato de suas fases estarem relacionadas com eventos terrestres, como a maré e etc.

Sendo assim, é óbvio e até lógico, que a grande maioria dos povos antigos descrevam "deuses que vieram do céu". Ora, a luz, que dava vida as colheitas, vinha do sol que está no céu, a chuva, que irriga e dá a vida aos animais e homens, vinha do céu, a lua, que ilumina e noite está no céu. Enfim, tudo que o homem antigo identificava como importante para a sua vida estava em cima, no céu, portanto, estranho seria se eles não descrevessem deuses vindo dos céus, você não acha?

Mas voltando ao assunto do artigo, chegamos à duas conclusões:

  • A primeira que existem pesquisadores que negam o valor do mito, o enxergam como algo simples, apenas inventado por pessoas que não tinham conhecimentos.

  • A segunda é que existem pessoas que acreditam na importância dos mitos, entendendo que ele traz consigo uma mensagem que não está escrita de forma clara, transparente, mas que pode ser interpretada não pelo que está escrito, mas pelo contexto conhecido da época.

O mito foi e é estudado até hoje por diversas correntes, e é importantíssimo que historiadores e arqueólogos entendam seus tipos e diferenças, a fins de gerarem uma visão menos fantasiosa e mirabolante, como vemos á rodo nos canais de entusiastas. Analisaremos agora possíveis influências tidas pelos hebreus, na época da produção do Gênesis.

A Influencia de Outras Culturas

Como já foi dito, o Enuma Elish e o Gênesis compartilham diversas similaridades, tantas que muitos estudiosos afirmam que é a mesma história que foi adotada e posteriormente modificada em certos pontos pelos Hebreus. Sabemos que os Babilônios adotaram a cultura e as crenças dos acadianos, que fizeram o mesmo com os Sumérios, e nesse contexto, fica claro aos olhos que os Hebreus fizeram o mesmo com os Babilônios.

Poderíamos evidenciar esse acontecimento apenas usando a lógica, ao ler o livro de gênesis, logo no início é contada a história da Abraão, que como sabemos, foi o precursor da religião cristã e há quem diga até que da Grega também. O trecho em questão pode ser encontrado em Gn 12: 31-32, e confirma que Abraão era natural da cidade de UR dos Caldeus.

É importante entender que existe uma contradição aí, pois neste período indicado no livro bíblico, a cidade de Ur estava sob controle de um povo chamado Ur-kardim, que para alguns pesquisadores são os próprios Caldeus, para outros não, porém, isto é assunto para um outro artigo, que postaremos futuramente.

De qualquer jeito, é claro que, seja qual for a época que Abraão tenha saído de UR, sua crença era mesopotâmica, seus mitos eram mesopotâmicos e logicamente, todo ensinamento que poderia ter sido passado por ele, era de origem mesopotâmico.

O ser humano é e sempre foi influenciado pelo meio em que vive, o contato com outros povos e culturas possibilita uma mudança de mentalidade que resulta na maneira de agir. Como sabemos o povo hebreu teve contato com vários povos e culturas, embora não tenham sido contatos pacíficos, continuam servindo ao termo contato, uma vez que eram aprendidos e incorporados mitos e crenças e hábitos destes demais povos.

Decisivamente marcante foi o contato dos hebreus com os babilônios e sua cosmovisão, como já foi citado. Durante o período do exílio, por volta século VI a.e.c., o povo hebreu precisou fazer uma releitura de sua própria história a fins de encontrar maneiras de conservar e assegurar sua identidade. Posteriormente, muitas das escritas contidas no antigo testamento foram revistas, algumas modificadas, outras retiradas, outras adicionadas, mas nos manteremos falando apenas do inicio Gênesis, por enquanto.

Nesse contexto, podemos concluir que cada cultura e cada povo tem seu modo de conceber e contar as histórias que lhes foram vividas ou passadas, mas também que são influenciados por histórias, mitos e lendas de outros povos. Veremos agora como os Babilônios e os Hebreus relataram a obra da criação, a seguir faremos a comparação de alguns trechos contidos no Enuma Elish e no Gênesis.

Enuma Elish

O Enuma Elish inteiro possui mais de 1000 linhas, sendo assim, resumiremos a história das tábuas, mantendo os pontos mais relevantes e posteriormente especificando os trechos na hora da comparação.

Os três nomes mais importantes que constam no Enuma Elish são: Apsu - masculino, água doce, progenitor, Tiamat - feminino, água salgada, caos, abismo, representada por um monstro marinho e Marduk, filho de Enki. Alguns pesquisadores consideram que está é a Trindade Babilônica.

Apsu, Tiamat e Marduk. Relevo Assírio do Palácio de Níniveh

Quando no alto os céus não tinham nome, e em baixo a terra não fora nomeada, havia senão o primordial Apsu, águas doces, progenitor, e a tumultuosa Tiamat, águas salgadas, o útero de tudo. E então a partir de Apsu e Tiamat, nas águas dele e dela, foram criados os deuses, e para dentro das águas precipitou-se a terra.

A discórdia rompeu entre os deuses, apesar de serem irmãos, eles começaram a festejar e também brigar, fazendo tudo tremer, como numa dança frenética, de tal forma que Apsu não pode silenciar o clamor dos jovens deuses, fazer cessar tal mal comportamento. Então estes novos deuses começaram a incomodar Apsu e Tiamat, pois são demasiadamente tumultuosos e Apsu decide matá-los.

Tiamat, ainda estava quieta quando Apsu, chamou por seu conselheiro Mummu: “Caro conselheiro, vem comigo a Tiamat”. Eles assim o fizeram e em frente a Tiamat, se sentaram falando sobre os jovens deuses, seus filhos primogênitos. Disse Apsu: “Os modos deles me revoltam, dia e noite, sem cessar, sofremos. Minha vontade é destruí-los, todos eles, para que possamos ter paz e dormir novamente”.

Então Mummu aconselhou Apsu: “Pai, destrua-os todos numa rebelião de monta e teremos paz durante o dia e à noite, todos poderemos dormir”. Quando Apsu ouviu que os dados haviam sido lançados contra seus filhos e filhas, sua face inflamou-se com o prazer do mal; mas a Mummu ele abraçou, pendurou-se ao seu pescoço, colocou-o nos seus joelhos e o beijou.

O deus Ea, também conhecido por Enki, descobre o plano, antecipa-se e mata Apsu. Posteriormente, Damkina, esposa de Enki, dá à luz Marduk, entretanto, Tiamat, enraivecida pelo assassinato de seu marido, jura vingança, criando doze monstros para executar sua vingança.

Tiamat casa com o deus Kingu, um desses monstros, o mais forte de todos e coloca-o à frente de seu novo exército. As forças que Tiamat reuniu preparam-se para a vingança, entretanto, Enki descobre o plano e confronta-a, mas é derrotado. Anu, pai de Enki, um dos deuses mais fortes até então, desafia-a, mas tem o mesmo destino. Os deuses começam a temer que ninguém seria capaz de deter Tiamat.

Foi Então que Marduk, que estava quieto até então, convence os outros Deuses de que pode vencer Tiamat, com a condição de que se o fizer, em troca deverá ser nomeado o Deus dos deuses, a deidade mais forte e mais respeitada dentre todas. Os deuses aceitam a proposta de Marduk, que reúne as armas, magias dos quatro ventos e ainda os sete ventos da destruição, e segue para o confronto.

A batalha se inicia e perdura por horas, até que Marduk prende Tiamat numa rede e conjura os poderes dos ventos, que entram na boca de Tiamat a mantendo aberta e incapacitando-a de conjurar magias. Após isto, Marduk mata-a com uma seta (lança ou flecha) que entra pela boca de Tiamat e a atinge no coração. Marduk divide o corpo dela, usando metade inferior para criar a terra, e a metade superior para criar o céu.

Representação babilônica, Marduk mata Tiamat. Museu Britânico de Londres.

Marduk cria residências para os outros deuses e à medida que estes vão ocupando o seu lugar, vão sendo criados os dias, meses e estações do ano, o que retrata a criação dos astros celestes, bem como a percepção de contagem temporal.

Da saliva de Tiamat, Marduk cria a chuva, e a cidade da Babilónia é criada sob a proteção dele. Agora os deuses reclamavam para o novo deus supremo que não tinham ninguém para os adorar ou trabalhar por eles, então Marduk decide criar os seres humanos. Mas precisa de sangue divino para criar a vida, então ele decide que um dos deuses deverá morrer, o culpado de lançar o mal sobre os outros.

Marduk consulta os outros deuses e descobre que quem incitou a revolta de Tiamat foi o seu marido, Kingu, então Marduk o mata, dá seu sangue para Enki, que usa o sangue e argila para criar o Homem, de forma a que este sirva os deuses e os adore.

Está é a história principal passada pelo poema Babilônico, não achamos necessário resumir a história Bíblica, pois subentendemos que você conheça o texto de Gênesis, ou que no mínimo tenha uma Bíblia em casa, ou use uma versão online para acompanhar os trechos que citados.

Analise e Comparação

No capítulo anterior citamos resumidamente a história principal contida no Enuma Elish, agora, selecionaremos algumas partes do poema original para fazer as comparações almejadas. O texto do poema Enuma Elish que usaremos para fazer a comparação foi traduzido a partir do texto Frederico Lara Peinado (2008), já o texto Bíblico foi extraído da Bíblia de Jerusalém (2002), que é tida como a mais fiel ao texto original (há controvérsias).

O texto babilônico é composto por sete tábuas, o que já faz menção aos 7 dias da criação do mundo, segundo o Gênesis. Nota-se que até isso é semelhante, no Gênesis o mundo é criado em 7 dias, provavelmente por que a história que originou o texto continha 7 tábuas.

 

Gênesis I

No princípio, Deus criou o céu e a terra, Ora, a terra estava vazia e vaga, o caos cobria o abismo e um sopro de Deus agitava a superfície das águas. Deus Disse: “Haja Luz” e houve luz. Deus viu que a luz era boa, e separou a luz e as trevas. Deus Chamou a Luz de “Dia” e as trevas de “noite”. Houve uma tarde e uma manhã: este foi o primeiro dia. (Bíblia de Jerusalém, 2002, Gn 1,1-5).

 

ENUMA ELISH (Tabua I)

Quando no alto o céu ainda não havia sido nomeado, e abaixo, a terra firme não havia sido mencionada com um nome, só Apsu, seu progenitor, e a mãe Tiamat, a geradora de todos, mesclavam suas águas: ainda não se haviam aglomerado os juncos, nem os canaviais tinham sido vistos. Quando os celestes ainda não haviam aparecido, nem tinham um nome, nem fixado nenhum destino, os deuses foram criados”.

 

Enquanto o poema babilônico conta a criação do mundo a partir de dois princípios primordiais (Apsu e Tiamat), O Gênesis retrata o mesmo evento, mas advindo de um só Deus. Percebemos que os dois textos remetem a um tempo longínquo, onde nada havia sido ainda criado, e percebe-se também que as duas narrativas poéticas têm a mesma estrutura ao iniciarem sua construção literária, enfatizando o vasto vazio antes da criação.

Um ponto que chama atenção é a relação entre a água e o caos, no poema babilônico pode-se notar a descrição do universo primitivo como uma confusão de águas personificadas pelo casal divino Apsu e Tiamat. Apsu era o princípio cósmico masculino, uma espécie de abismo primordial, formado pelas águas doces, como é descrito mais à frente na tabua I. Já Tiamat era o princípio cósmico feminino, personificada pelas águas salgadas.

No poema babilônico as águas doces e salgadas encontram-se intimamente confundidas e misturadas, o que remete ao caos citado no texto de Gênesis, como se nada tivesse forma ou objetivo concreto, como se tudo fosse apenas um grande oceano de águas doces e salgadas, um caos dominante. Quando Apsu e Tiamat se unem com o objetivo de criar o mundo, eles separam suas águas, ordenando-as diferentemente, do mesmo jeito que Deus separa a luz e as trevas em Gênesis.

Agora as águas doces e salgadas estavam separadas, assim como a luz separada das trevas, confirmando que o caos chegara ao fim, seguido de uma nova era de ordem e Luz. Na versão bíblica, a luz é a primeira obra de Deus realizada pela palavra: “E Deus disse: Haja luz. E houve luz”. Neste contexto, percebemos que a luz independe de fonte, independe do Sol, de algo que a produza, a voz divina chama e é obedecida, a palavra é direta e eficaz.

Nesse sentido, podemos crer que esta luz criada no primeiro dia remete à ordem que vinha iluminar a desordem do caos. Nota-se que as trevas não foram chamadas à existência, isto por que a noite é um resíduo da escuridão do caos, este, que já existia desde o princípio. (Para a cosmovisão dos povos da época, obviamente.)

Ainda falando da criação da luz, o termo “E houve luz”, faz da luz uma “criatura” de Deus, isto para não relacionar a origem da luz ao sol, que foi criado apenas no quarto dia da criação segundo Gênesis. Isso acontece por que os hebreus não queriam que o sol fosse venerado como um deus, como acontecia em diversas culturas antigas. Eles não queriam isso justamente para não serem comparados a outras culturas que o faziam.

A tábua I, referindo-se à questão do nome, na versão babilônica, diz: “Quando os celestes ainda não haviam aparecido, nem tinham um nome”. Analisando isso podemos concluir que ter um nome é o mesmo que a existir. Não o ter, implica em não existir, pois as coisas só são reconhecidas após serem nomeadas, a partir disso entendemos a importância do nome, para as culturas daquela época.

Existem também diferenças. Apsu e Tiamat, necessitam um do outro para dar criação as coisas, enquanto no texto bíblico, Deus apenas fala e as coisas acontecem. Só ele existia e somente ele era necessário para criar tudo. “E deus disse: Haja Luz. E houve Luz”. Nota-se a onipotência do deus hebreu, coisa que não acontece no poema babilônico.

Outro ponto que demonstra essa diferença proposital nos poemas, é que o Enuma Elish retrata uma batalha entre a ordem e o caos desde o princípio. Deuses se revoltando, lutando uns contra os outros, matando uns aos outros, enquanto no Gênesis não há lutas entre deuses. Não há vingança e assassinatos, somente um Deus onipotente que não precisa de nada para criar tudo, demonstrando supremacia.

Firmamento

 

Gênesis 1

Deus disse: Haja um firmamento no meio das águas e que ele separe águas das águas. E assim se fez. Deus fez o firmamento que separou as águas sob o firmamento das águas que estão acima dele, e Deus chamou o firmamento de céu. Houve uma tarde e uma manhã, era o segundo dia. Deus disse: que as águas acima se reúnam num só lugar, e que apareça o continente. E assim se fez. Deus chamou o continente de terra e as águas ao seu redor de mares, e Deus viu que isso era bom” (Bíblia de Jerusalém, 2002, Gn, 1,6-10)

 

ENUMA ELISH (Tábua IV)

“Com a cabeça repousada, Marduk contemplava o cadáver de Tiamat. Dividiu logo a carne monstruosa para criar maravilhas. Dividiu em duas partes, como se fosse um peixe destinado a secagem, e usou a metade de cima para criar o céu em forma de abóbada. Com a metade inferior, ele criou a terra, a situou no meio das águas que chamou de mares, e colocou guardiões, cuidando para que estas não saíssem das águas” (Tábua 4, linhas 128-135)

 

O tema firmamento está presente nas duas obras, como já citamos. Na versão babilônica, Marduk mata Tiamat e dos restos mortais de seu corpo e argila, forma o universo. Na versão bíblica, Deus mais uma vez, por meio de sua palavra criadora, faz com que surja um firmamento separando as águas que estão acima, das águas que estão abaixo.

Isso acontece, porque para os babilônios, acadianos e sumérios, a terra era como um disco, flutuando no meio de um oceano primordial, a parte de cima era um domo e impedia que as águas de cima caíssem sobre a terra. Logo abaixo da terra estaria uma espécie de submundo que era chamado de kur.ur, que pode ser interpretado como "cidade da montanha" ou "cidade subterrânea.

O ponto aqui não é chamar atenção para “fazer” ou “criar”, mas sim despertar conscientemente a percepção de um ato criador fácil, poderoso e sem esforço, diferentemente do mito babilônico. Mais uma vez no texto bíblico nota-se a que não há batalhas entre deuses, não há competições entre poderes, apenas um deus criador usando seu poder incontestável para criar.

A Bíblia de Jerusalém (2002, p. 33), em sua nota de rodapé (letra f), nos esclarece que a “abóboda” aparente do céu era para os antigos semitas uma cúpula sólida, mas também um tipo de “tenda” armada, o que remete ao trecho do poema babilônico em que Marduk divide o corpo de Tiamat em cria o céu e a terra com cada parte. Nesse sentido identificamos que a “cúpula sólida” foi uma maneira de descrever a essa divisão, onde o lado de dentro da cúpula se mostrava independente do lado de fora.

Os Astros

 

Gênesis 1

"Deus disse: Que Haja luzeiros no firmamento do céu para separar o dia e a noite: que eles sirvam de sinais tanto para as festas quando para os dias e os anos, que iluminem a terra, e assim se fez. Deus fez dois luzeiros maiores, o grande como poder do dia e o pequeno como poder da noite, e as estrelas." (Bíblia de Jerusalém, Gn 1, 14-19)

 

Enuma Elish (Tabua IV)

"Marduk fez a sua palavra, segundo a sua ordem, a constelação desapareceu e a uma nova ordem, aparece, a Constelação ficou restaurada. Shamash e Sin agora se põe em suas residências. Quando os deuses, seus pais, viram a eficácia de sua palavra o saudaram alegremente: “Só Marduk é Rei”. (Tábua IV, linhas 25-28)

 

Mais uma vez nos deparamos com a questão da palavra criadora, mas desta vez, no poema babilônico, Marduk cria os astros também pela força de sua palavra. Shamash é o deus sol para os babilônios, e Sin é a deusa lua. Estes se pondo em suas residências, retratam o começo do texto bíblico, onde os luzeiros são postos em seus devidos lugares no firmamento.

A similaridade no poema bíblico salta aos olhos, pois notamos que o grande luzeiro do dia é o sol e o pequeno luzeiro da noite é a lua. Notamos que a constelação também é citada no poema bíblico, porém, como "estrelas“. Ora, sabemos que constelação é o nome dado para uma formação constituída de estrelas, mais um ponto congruente.

Uma divergência, é que nas culturas do Oriente Médio, especialmente, dos povos vizinhos a Israel, os astros tinham grande importância, eram considerados deuses. Já na redação bíblica, eles não passam de criaturas de Deus, e não recebem se quer um nome sendo apenas chamados de grande luzeiro e pequeno luzeiro. Nota-se que o autor bíblico reduziu a função desses astros a “lâmpadas” que iluminam a terra.

As estrelas, cujos movimentos eram acompanhados pelos antigos astrólogos para orientação aparecem no relato de Gênesis quase que como uma ideia secundária, dando a entender que estas ainda eram menos do que os astros, que no poema babilônico eram deuses, mas no bíblico apenas completam a criação primária.

Perceba que querendo enfatizar a questão do monoteísmo, que é a crença em um só Deus, a escola sacerdotal desmitificou profundamente as forças siderais, às quais nega honras divinas, bem como faz com a natureza e seus seres e forças. Desta forma toda a natureza é apresentada como criatura de Deus, libertando o homem de uma submissão diante desta, mas o colocando em submissão a outro tipo de crença.

A Criação do Homem

 

Enuma Elish (tábua VI)

Quando Marduk ouviu as palavras dos deuses, seu coração o empurrou a criar maravilhas, e ele comunicou a EA(Enki): “vou juntar sangue e argila e formar ossos, farei um protótipo que se chamará homem, vou criar este homem para que lhe sejam impostos os serviços dos deuses e que eles estejam descansados”. (Tábua VI, linhas 1-8)

Enuma Elish (tábua VI)

Ataram-no (kingu) e o mantiveram preso em frente a EA. Inflingiram-lhe seu castigo, cortaram-lhe o sangue. E com seu sangue e argila, EA formou a humanidade e impôs sobre ela o serviço dos deuses, libertando-os deste. (Tábua VI, linhas 31-34)

 

Gênesis 1

Deus disse: “Façamos o homem à nossa imagem, como nossa semelhança, e que eles dominem sobre os peixes do mar, as aves do céu e os animais domésticos, todas as feras e todos os répteis que rasteja sobre a terra”. Deus os abençoou e lhes disse: “sede fecundos, multiplicai-vos, enchei a terra e submetei-a; Deus disse: “eu vos dou todas as ervas que dão semente, que estão sobre toda a superfície da terra e todas as árvores que dão frutos que dão sementes: isso será vosso alimento” (Bíblia de Jerusalém, 2002, GN 1, 26-29)

 

Logo de cara percebemos que os dois textos tratam de uma reunião entre os deuses para decidir como seria essa criação (homem). No texto babilônico nota-se que Marduk ouviu as palavras dos deuses e resolveu criar algo maravilhoso após isto, sendo que na versão bíblica é dito “façamos o homem à nossa imagem e semelhança” o que também retrata uma espécie de reunião, ou conselho dos deuses decidindo como seria feito o homem.

Como poderia haver uma reunião dos deuses, se na Bíblia só existe um Deus? Bom, o que se percebe é que existiam sim outros deuses nas crenças hebraicas, mas foram desmitificados assim como a natureza e os astros, como já foi dito. Existem vários pontos na bíblia que demonstram isso, como: "Quem entre os deuses é semelhante a ti, Senhor? Quem é semelhante a ti? Majestoso em santidade, criador de maravilhas” Êx 15:11-12.

Ou em 1 Reis 11:33. “Isso porque Salomão me abandonou para Adorar Astarte (Astaroth), deusa dos Sidônios, Camos, deus de Moab, e Melcom, deus dos amonitas”. Só esses dois trechos já deixam claríssimo que existiam outros deuses na antiguidade hebraica, e você encontra mais trechos afirmando isso na bíblia, estes não são os únicos.

Mais um ponto que é pertinente à teoria é que na Bíblia hebraica "original", é usada a palavra Elohim (do hebraico אֱלוֹהִים) para se dirigir a Deus. Na língua hebraica, o sufixo “im” do final da palavra Elohim, corresponde ao nosso “s” que indica a pluralidade da palavra, por isso, é verdade que o termo Elohim é forma plural de El (אל), que ao pé da letra significa “Deus” ou “majestade” em hebraico. Assim entende-se que na Bíblia original, quando se fala de Deus, estão se referindo ao plural de Deus, ou seja, deuses.

Outro ponto interessante é que no texto babilônico, Enki usa o sangue de um ser divino e argila para criar o homem, já no texto bíblico, é dito que ele será feito à imagem e semelhança dos deuses. Comparando com a lógica chegamos à conclusão que “à nossa imagem e semelhança” nada mais é do que uma alusão ao texto babilônico, no qual próprio sangue de um deus é utilizado para criar o homem, caso contrário, por que não usar o sangue de qualquer outro animal?

Ao falar de Genesis 2, percebemos um ponto bastante interessante, se você pegar o capitulo 2 de Gênesis, a partir do versículo 4, cujo título é “ A formação do jardim do Éden”, você vai perceber que as coisas escritas ali dispensam completamente o que está escrito no capitulo 1, ou seja, se não houvesse o primeiro capítulo, ainda assim haveria uma teoria completa para explicar a criação do universo.

Isso acontece por conta das “correntes” ou fontes como citamos no início do artigo, pois os autores dos textos bíblicos não pertenciam à uma só escola literária, mas a 4 diferentes, o que resultou em algumas controvérsias nos textos. Por último, reforço a tese citando a primeira nota de rodapé do livro de Gênesis: (Gn 1, 1-2,4a).

“A narrativa da criação não é um tratado cientifico, mas um poema que contempla o universo como criatura de Deus. Foi escrito pelos sacerdotes no tempo do exílio na Babilônia (586-538) a.C”.

Creio que a nota fala por si só, não precisando de explicação para comprovar o afirmado.

Conclusão

A religião judaica passou por uma transformação que veio do politeísmo acadio-babilônico, passou pela monolatria, que é saber que existem vários deuses, mas preferir adorar apenas um, e só aí se tornou o monoteísmo que conhecemos hoje.

Isso era normal, era o que acontecia na época. Os hebreus fizeram com os babilônios o que os babilônios fizeram com os acadiano, que fizeram com os sumérios, que fizeram com os ubaidianos e por aí vai. Aconteceu com diversos outros povos da antiguidade, como Grécia e Roma, onde os romanos adotam costumes, crenças e até a língua grega, dando luz à cultura Greco-Romana.

A lógica da religião antiga idealizava que era comum para um povo que vencia, ou no caso, dos hebreus “se libertava”, acreditar que seu deus era mais poderoso do que o deus do povo inimigo em questão. A ideia parte do pressuposto que se os hebreus tinham seu Deus, e orando para ele conseguiram a libertação, esse deus logicamente seria mais forte do que os deuses babilônicos, caso contrário, a prece atendida seria a deles e não dos hebreus.

A mesma coisa que aconteceu com os babilônios, ao adicionar Marduk e algumas peculiaridades nos mitos acadianos. É obvio que existem outras análises para este assunto, tanto antigas quanto modernas, pois como foi dito, um mito antigo possui simbolismos e figurações, o que abre espaço para diversas interpretações.

Sim, com toda certeza os hebreus incorporam os mitos mesopotâmicos em suas crenças, porém, historicamente isso não é considerado plágio, mas sim "reciclagem mitológica", onde se utiliza um mito antigo, mas adapta-se seu contexto á visão do povo que o recicla. De qualquer jeito, o importante é conhecer tais mitos e, principalmente, saber a diferença entre mitologia e história, entre o que se diz que aconteceu e o que pode ser provado ter acontecido, caso contrário, seremos sempre como crianças deslumbradas, acreditando nas histórias de ninar que nossos pais (antepassados) contavam.

Bibliografia e Referências

Pesquisa Autoral por Edson Almeida. L.W.King - Enuma Elish: The Seven Tablets of the History of Creation

L.W.King - Enuma Elish (2º Volume): The Seven Tablets of Creation; The Babylonian and Assyrian Legends Concerning the Creation of the World and of Mankind

Mohammad R. Zok - Scientific Secrets in the Epic of Creation Enuma Elish

LAMBERT, W. G. - Babylonian Creation Myths

Shemuel B. G - THE ENUMA ELISH, The Babylonian Creation Myth



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